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VILÕES E HERÓIS

VILÕES E HERÓIS

Por: Marcio Santim

Um ponto que tem chamado bastante minha atenção com relação a muitos filmes e séries televisivas exibidas atualmente, refere-se à ocorrência de significativas mudanças nas ênfases atribuídas a determinados personagens e papéis no desenrolar das tramas.

A forte linha que antigamente demarcava quem eram os “mocinhos” e os “bandidos” dentro das produções cinematográficas ou televisivas passou gradativamente a ceder lugar para uma delimitação mais tênue e flutuante.

Em outras palavras, não encontramos mais com tanta frequência nesses meios de entretenimento aquele tipo característico de linearidade em que o personagem era apresentado ao público de modo cem porcento benevolente ou, contrariamente, maléfico nessa mesma magnitude.

É bem comum serem apresentados ao telespectador oscilações nos comportamentos dos personagens que revelam diversos tipos de decepções e conflitos interiores por eles experenciados. Fatos esses que acarretam confrontos desses personagens com todo um sistema de valores vigentes, fazendo com que as pessoas frente às telas se indaguem constantemente sobre a validade de certos princípios éticos e morais estabelecidos bem como quanto a quem efetivamente os concretiza.

Para inserir os telespectadores dentro desse contexto, tem sido comum os autores e os diretores de várias dramaturgias utilizar como recurso a exploração do histórico de vida dos personagens, apresentando algumas ocorrências esclarecedoras quanto às razões que os levaram a se tornarem perversos ao longo da vida.

Um filme que ilustra esse tipo de situação é Coringa, lançado em 2019 e dirigido por Todd Phillips. Personagem esse que na maior parte das vezes era apresentado ao público como um vilão maluco totalmente descolado da realidade que apenas servia para corromper a fictícia cidade de Gothan e infernizar a vida do herói e seu maior inimigo Batman.

Dentro dessa linha de raciocínio no que diz respeito à inversão de papéis tradicionais relativos ao vilão e ao herói, podemos citar a famosa série espanhola La Casa de Papel em que assaltantes de Bancos se constituem os mocinhos da história, tendo como pano de fundo nessa trama o questionamento sobre quem seriam os perversos na realidade, tendo em vista que os Bancos apesar de fundamentarem suas ações dentro da legalidade tributária, apresentaram-se ao longo da história como instrumento de exploração econômica e de acumulação de riqueza.

Tais modificações envolvidas nesses enredos contemporâneos, refletem dinâmicas e conflitos sociais marcantes da nossa realidade no que diz respeito à presença de uma contínua crise ética e moral que se expressa primordialmente no âmbito sócio cultural, acompanhada de profundas perturbações existenciais a nível pessoal, ou seja, das dificuldades encontradas pelas pessoas em identificar sentidos, valores e objetivos para as suas vidas.

Se antigamente, o público frente às enormes telas cinematográficas compartilhadas com outras pessoas torcia para o êxito do protagonista da história, identificado com rígidos valores e princípios tidos como absolutamente corretos socialmente, hoje, diante de suas telas menores localizadas no espaço privado residencial tem desenvolvido posicionamentos distintos quanto àqueles de outrora.

De um lado, a fim de compreendermos essas diferenças, precisamos considerar que a própria configuração desses entretenimentos se transformou substancialmente. A começar pela forma de seu consumo, em que na maior parte das vezes já não é mais realizado juntamente com as demais pessoas em razão dos indivíduos assistirem a esses tipos de produções isoladamente.

Este fato, por si só, já contribui bastante para que as pessoas detenham um certo tipo de liberdade aparente para formar as suas próprias convicções, visto não estarem, a princípio, sob influência direta das pessoas que estão a sua volta. 

As gargalhadas, as vaias, os xingos emitidos por um grande número de pessoas que estão ao redor do sujeito são extremamente contagiantes e sugestivos do ponto de vista de formação de convicções particulares, tanto no sentido de adesão quanto de repulsa a determinadas situações polêmicas trabalhadas dentro da dramaturgia.

Pois bem, mas é certo que nos dias de hoje, talvez de modo menos imediato tal como o presencial citado no parágrafo anterior, também encontramos outros espaços relacionados a essas trocas de experiências e concepções, principalmente as redes sociais que de modo bem mais abrangente e consequentemente potente têm propiciado o contágio em massa relativo a posicionamentos ideológicos antagônicos, geralmente acarretando discussões supérfluas que estimulam as pessoas a aderirem polarizações com mínimas bases racionais.

O acentuado desenvolvimento dos meios comunicativos em decorrência dos saltos tecnológicos ocorridos em um curto espaço de tempo fomentou a divulgação de muitos fatos negativos envolvendo a imagem de figuras públicas, ocupantes de cargos que supostamente representam ou são destinados a atender aos interesses coletivos.

Assim, por meio da investigação jornalística e atuação midiática, intensificou-se o conhecimento adquirido pelas pessoas quanto as mais variadas formas de corrupção, escândalos sexuais, vícios e outras ilicitudes cometidas por diversos sujeitos que até então forjavam uma aparência límpida e honesta.

Essas revelações se sucederam nos mais diversos setores da sociedade, entre eles: políticos, religiosos, jurídicos, educacionais etc. E uma das questões sempre suscitada nesses casos se refere à importância de se preservar a privacidade dos envolvidos em uma denúncia; até onde e quando ela deve se manter resguardada? No meu modo de ver, até o momento em que certos comportamentos não prejudiquem ou se se sobreponham aos interesses públicos definidos democraticamente.

Sem dúvida, que essas são questões delicadas e complexas que envolvem constantes reflexões e discussões perante a participação de toda a sociedade, levando-se em que conta todo o contexto social determinante de um momento histórico.

Diante do exposto, as pessoas em geral se tornaram relativamente menos ingênuas nesse aspecto, ou seja, de acreditar piamente no discurso realizado pelos representantes daquelas instituições destinadas a defender o interesse público.

Não faltam casos concretos a serem citados relativos à falácia desses tipos de retóricas, no sentido de constatarmos exatamente o contrário: a sobreposição de toda espécie de interesses particulares sobre os de ordem coletiva, disfarçados com inflamados recursos demagógicos.

Considerando-se esse fato, para ilustrar, podemos citar como exemplo dentro do cinema, o filme brasileiro Tropa de Elite 2, dirigido por José Padilha em que podemos notar as mudanças de concepções e comportamentos apresentados pelo protagonista tenente-coronel Nascimento quando comparados ao primeiro filme.

Nessa sequência, o aludido personagem começa a se questionar sobre se efetivamente aquilo contra ele lutava – o narcotráfico dentro das favelas cariocas – deveria ser o alvo principal das suas ações ou se o problema não se estruturava muito além com relação àquilo que imaginava. Como sugere o próprio subtítulo do filme, parece que realmente o inimigo mais poderoso era outro. blindado com os mais variados subterfúgios legais.   

No entanto, apesar de a mídia ter levado ao público o conhecimento dessas mazelas que frequentemente minam a sua credibilidade frente aos princípios tradicionais alardeados pelas diversas instituições sociais, ela também contribui para manter a ignorância das pessoas ao celebrar o culto das personalidades públicas.

Esse papel dos meios comunicativos em parte é compreensível, pois como estão vinculados a todo um sistema econômico e necessitam de recursos financeiros para sobreviverem, acabam exercendo uma função social delicada em razão de sempre terem que dotar a informação com algum valor utilitário para poderem a vender e com isso obterem o almejado retorno financeiro que mantém o seu funcionamento.

No caso das figuras políticas cuja imagem sofre um processo de edição que desfigura totalmente a pessoa real que está por detrás da máscara construída, elas se constituem como mais um produto a ser encaixado no mercado publicitário que se encontra intimamente vinculado com a mídia.

E, na maior parte das vezes, qual é a principal característica inserida nessas imagens para alcançarem notoriedade perante o público? A de superes heróis no sentido de praticamente sozinhas poderem transformarem toda uma estrutura institucional podre e corrompida.

Mas para se estabelecer essa crença na personalidade é imprescindível um passo adiante: identificar e apontar um suposto vilão, responsável exclusivo por toda a desgraça social, para ser execrado e odiado por parte significativa da população.

Essa personalização é sempre limitada no sentido de dificultar o acesso das pessoas a formas de esclarecimentos eficazes quanto às dinâmicas sociais que as envolvem. Além disso, o culto da personalidade produz diversos tipos de estímulos para fazerem os indivíduos a acreditarem em soluções mágicas e fáceis para a resolução dos problemas enfrentados no cotidiano.

Algumas vezes, a citada personalização se expande um pouco para adquirir uma conotação de particularização, ou seja, não se trata mais exclusivamente de certas pessoas definindo a realidade, mas sim de partidos ou seguimentos religiosos, por exemplo, mas a lógica superficial envolvida na compreensão do fenômeno é sempre a mesma, por descartar o todo como determinante do sistema.

Dessa forma, compreendem-se as razões por que a maior parte das instituições mudaram pouco no seu âmago ao longo da história, mesmo tendo sido frequentemente comandadas por pessoas com inclinações ideológicas divergentes.         

E com relação às dramaturgias, apesar dessa quebra de paradigma ocorrida quanto à identificação frente a certos padrões rígidos valorativos, tanto com relação ao conteúdo dos filmes (maior dinâmica no desenrolar da história dos personagens) quanto à expectativa presente nesse mesmo sentido nas pessoas que lhes assistem, parece que ainda não houve o desprendimento dessa lógica personalista, pois mesmo se invertendo os papéis, persiste a dicotomia relativa à presença de vilões de um lado e heróis de outro, compondo o cenário e o desfecho da história.

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POR MÁRCIO SANTIM

NOSCERE AUDERE VELLE TACERE

NOSCERE - AUDERE - VELLE - TACERE

Por Antonio Pessotti

A Música sempre inspirou o olhar para o futuro, para o que seria oculto aos olhos dos “pobres mortais”, que digam certas letras, como “Cartomante”, “Está escrito nas estrelas”, entre outras. Bom, “caso do acaso bem marcado em cartas de tarô”, ou não, o eterno questionamento da Esfinge está bem na “moda”, no sentido literal da palavra que leva muitas modelos lindas às passarelas. Aquilo que se repete dentro de uma amostragem de eventos pode guiar nossas tendências, se assim deixarmos e se os atuais algoritmos das redes sociais, novos espíritos encarnados nas nuvens do “não saber”, funcionam como nossos oráculos em pleno século do “telefone celular, espelho meu”.

Fugir dessa medida estatística como “práxis” é fugir de certas situações ou configurações da realidade. No entanto, não dá para fugir da Esfinge do dia a dia, que nos pergunta sempre “decifra-me ou te devoro”. O olhar narcisista do espelho pode revelar o pior de nós, nem sempre o belo reflexo de quem “não acha bonito o que não é espelho”.

A criatura mítica tem sua origem na antiguidade, não apenas na mitologia greco-romana, mas, bem anterior e comum a outras culturas. Os egípcios tinham androsfinge, hierocosfinge, e criosfinge, sendo o corpo sempre de leão e suas cabeças: humana, falcão, e cordeiro, respectivamente. A mais conhecida escultura é a Sesheps de Gizé, também denominada de “Pai do Terror”, em árabe. A mitologia grega tem a conhecida figura de Tebas, demônio de destruição e má sorte que questionava a todos os viajantes, como leão alado com cabeça de mulher. Algumas hipóteses consideram que seria uma mulher com patas, garras, e peitos de um leão, cauda de serpente e asas de águia. Sófocles relata em sua peça, Édipo Rei, que teria Hera, ou Ares, mandado a esfinge de sua casa na Etiópia  para Tebas, para aterrorizar a todos com o quebra-cabeça mais famoso da história: “Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?”. A etimologia do seu nome “sphinx”, que em grego significa “estrangular”, mostra o destino fatal dos incautos e inábeis nessa tarefa de vencê-la. Para nós, ficou o termo bem conhecido em várias áreas, o esfíncter, com a função de regular a passagem de fluidos em qualquer sistema, biológico (temos 43!) ou hidráulico.

Por outro lado, a Esfinge pode ser considerada a síntese de um ensinamento em quatro momentos, sintetizada pelos verbos “saber, querer, ousar, calar”, da mesma forma que a sonata número 2 de Chopin com os movimentos “Sepultura, Scherzo, Marcha Fúnebre, e Final”. Ela é representada no arcano XXII do Tarô, com a representação do ser andrógino no seu centro, superando as fases propostas pelos “monstros” dos quatro cantos da carta, semelhantes à visão de Ezequiel e na  iconografia como os quatro seres representantes dos evangelistas. Não é para assustar… “Monstro” é derivado do latim “monstrum”, de “ser deformado, monstruosidade, sinal, agouro”, literalmente “aquilo que deve ser mostrado”, derivado do verbo monere, “avisar, chamar a atenção para”. Para pensar, os machões de plantão não deveriam chamar as mulheres de sereias, posto que elas não eram tão belas assim, apenas com sua voz maviosa, atraíam os marinheiros e, eram aladas, como representadas na Odisseia de Homero.

Esfinges, Sereias, ou Hárpias, suas primas… Que nenhuma delas sejam nossas companheiras, antes, que sirvam como reflexão das nossas próprias dificuldades a serem vencidas. Que não nos estrangulemos diante das dificuldades, antes, meditemos ao som de Chopin ou com um bom chope, a beleza da vida e a superação dos problemas que nos cercam, sem ter nenhum esfíncter frouxo, como certos “representantes do povo”…

Salve, Alfredo!

Em silêncio, meditemos:

Pensais que a opinião pública nunca possa render homenagem o vício? Não, mas ela faz justiça à atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes infames estimem os bandidos audaciosos. A audácia unida à inteligência é a mãe de todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso Saber; para realizar, é preciso Querer; para querer verdadeiramente, é preciso Ousar; e, para recolher em paz os frutos da própria audácia, é preciso se Calar. SABER, OUSAR, QUERER, CALAR são os Quatro Verbos Cabalísticos que correspondem às quatro letras do Tetragrama e às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça humana; Ousar são as garras do leão; Querer são as ilhargas laboriosas do touro; Calar são as asas místicas da águia. Apenas se mantém e acima dos outros quem não prostitui os segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio daqueles.(In: A Chave dos Grandes Mistérios, Éliphas Lévi).

Antonio Pessotti é músico, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (IEL – Unicamp) e professor de Canto e História da Música na Escola de Música Maestro Ernst Mahle (EMPEM).

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