O DIVINO BAGGIO
Por: Marcio Santim
Começando os artigos deste ano com um pouco de nostalgia, principalmente direcionada àqueles que se lembram do tetra – campeonato mundial conquistado pela seleção brasileira em 1994 com a vitória sobre a Itália na decisão por pênaltis num jogo difícil e muito amarrado.
A aludida partida realizada debaixo de um calor escaldante na cidade de Pasadena (EUA) que não teve tantas emoções em seu decurso, ficou marcada por uma cena decepcionante para os italianos, relacionada ao pênalti cobrado para fora do gol por conta do principal craque da azurra: Roberto Baggio.
Mas dificilmente as pessoas imaginam o que está por detrás da mente desses jogadores famosos: medos, angústias, desejos e frustrações. A concepção que o público possui com relação a quaisquer tipos de celebridades é de que elas se constituem como seres supra-humanos, dotados de características que extrapolam substancialmente a realidade dos indivíduos comuns cuja vida se desenrola no universo dominado pelo anonimato.
Nesse sentido, os ídolos se configuram como uma espécie de semideuses e a sua imagem se descola da sua personalidade real. Mas esse processo de distanciamento não é realizado exclusivamente mediante uma percepção delirante do público, pois antes disso há o que podemos chamar de produção midiática das celebridades em que o seu próprio contexto de atuação provoca a exaltação da sua figura.
Em outras palavras: o futebol, a música, o cinema são áreas recobertas por altas doses de glamour em que quando determinada pessoa consegue se destacar dentro desses espaços é como que se ela fosse transportada para um outro mundo, muitas vezes imageticamente tão diferente do habitual, aproximando-se de uma dimensão que poderíamos considerar mitológica.
Porém, os ídolos nunca se esquecem completamente da sua natureza humana em razão de possuírem limitações similares àquelas pertencentes ao público que os veneram e acredita piamente no fato de que tanto pelo dinheiro quanto pela fama que os acompanham estão livres de todos esses tipos de mazelas que afligem esses ávidos telespectadores.
O documentário italiano “O divino Baggio” produzido em maio de 2021 dirigido por Letizia Lamartire traz à tona algumas dessas questões ao narrar a história de vida do jogador Roberto Baggio e alguns dramas por ele enfrentados durante a sua conturbada carreira profissional, entre eles: as drásticas consequências pessoais relacionadas ao pênalti desperdiçado na decisão com o Brasil que selou a perda da copa de 1994 pela seleção italiana.
Em termos psicológicos, o ponto crucial que merece ser destacado com relação à história do atleta apresentada no documentário, refere-se a sua obsessão em jogar a copa de mundo e conquistá-la para o seu país, preferencialmente diante de uma hipotética final contra a seleção brasileira.
Na realidade, ele gostaria de cumprir a todo custo uma suposta promessa que havia feita para o seu pai quando ainda tinha três anos de idade no momento em que ocorreu a derrota da Itália para o Brasil na copa de 1970.
Logicamente em face a sua tenra idade, Baggio não conseguia se lembrar dessa promessa em que somente veio tomar consciência anos depois por meio da narrativa efetuada pelo seu pai. Em razão dele ter se tornado um jogador promissor no futebol italiano e posteriormente mundial, a referida promessa não lhe parecia impossível de cumprir e tal perspectiva será a sua grande motivação durante a sua carreira profissional.
Por outro lado, ao verificar precocemente a habilidade que o pequeno garoto dispunha para o futebol e que o levou a se profissionalizar bem cedo nesse esporte, acendeu de forma incandescente no seu genitor a esperança de um dia poder ver o seu desejo realizado por meio de uma atuação épica de Baggio que resultasse no resgate do brilho vitorioso perdido pela sua amada seleção.
Porém, apesar de ter faltado pouco, as coisas não se sucederam exatamente como havia sonhado a família italiana e esse fato gerou nela ainda outras frustrações bem como a extração de mais lenha a fim de manter viva a sonhada vitória.
Esse fato é muito comum acontecer no interior de várias famílias, pois os pais costumam com certa frequência depositarem nos seus filhos uma grande carga emocional envolvida em diversos tipos de expectativas existenciais pelas quais os primeiros não conseguiram concretizar nas suas vidas pessoais em razão dos mais variados motivos.
Para compensar grande parte das frustrações experimentadas ao longo da vida, alguns pais anseiam que os seus filhos portadores de seu zelado sobrenome e da sua herança genética, realizem por eles os sonhos relativos àqueles que não conseguiram por si mesmos transformarem em realidade. E ainda, preferencialmente, esperam estar vivos para poderem presenciar e se regozijarem com as façanhas executadas pelos seus descendentes.
De forma semelhante ao exposto no documentário, esse tipo de pressão por parte dos pais sobre os filhos, por via de regra, inicia-se precocemente na infância, no momento em que a personalidade da criança ainda está em processo de formação.
Não podemos deixar de mencionar que no fundo se trata da existência de sentimentos egoístas de ímpeto narcísico impulsionando esses tipos de atitudes tomadas pelos genitores que por se apresentarem disfarçados com a máscara de se “querer o melhor para a prole”, dificulta-se que eles tomem consciência quanto às verdadeiras motivações envolvidas nessas formas de comportamento.
Ao focar excessivamente nas suas próprias expectativas em que na maioria das vezes são valorizadas socialmente de maneira acrítica, os pais acabam se esquecendo de observar as peculiaridades subjetivas apresentadas pelos seus filhos e assim restringem suas liberdades de escolha.
Por outro lado, não são todas as crianças que possuem passividade suficiente para aceitar tudo o que lhes é imposto pelos pais durante a vida. Há algumas consideradas rebeldes que mesmo possuindo todas as condições necessárias tanto de ordem objetiva quanto subjetiva para realizarem determinados desejos dos pais – frequentemente profissionais – não aceitam em razão de não quererem ser submissas a eles.
Outras crianças com personalidades distintas que anseiam por receber a aprovação e admiração dos pais, certamente apresentam comportamentos contrários aos descritos no parágrafo anterior no sentido de tentarem corresponder ao máximo com as suas expectativas, tal como foi no contexto da história apresentado pelo documentário em que o jogador deseja a todo custo vencer a copa para satisfazer a si, conquistando o reconhecimento do seu pai quanto à excelência da sua competência futebolística.
Uma lição importante que a clínica psicológica nos tem ensinado é que esses dois extremos de comportamentos relativos à extrema rebeldia ou incondicional submissão, sempre acarretam algum tipo de sofrimento psíquico. Esse mal-estar pode se manifestar de forma imediata na própria infância ou surgir posteriormente tanto na adolescência quanto na fase adulta.
O importante é que sejam dadas as devidas condições educacionais para que as pessoas aprendam a reconhecer e discriminar os seus desejos. Certamente que se tratam de questões complexas que não contam com a existência de receitas simples para serem aplicadas na sua resolução.
O fundamento está na seguinte hipótese: assim como ninguém poderia realizar o meu desejo eu também não poderia satisfazer o desejo de ninguém por ser algo cuja essência é intransferível. Penso esse conceito de desejo numa dimensão mais profunda, exclusivamente subjetiva que se aproximaria de uma definição psicanalítica e em face da sua complexidade, não entrarei no mérito.
Sem dúvida que em alguma medida precisamos do outro para satisfazer determinados desejos, caso contrário não teríamos necessidade de viver em sociedade e formar núcleos familiares, mas nesse campo temos que aprender a respeitar os limites e não extrapola-los a ponto de invadir o espaço subjetivo alheio ou deixarmos que o nosso seja indevidamente ocupado por aquilo que não nos pertence.
Precisamos pensar essa dimensão do desejo como algo que possa ser compartilhado espontaneamente, sem a atuação de princípios que envolvem relações de dominação que subjuguem os outros ou anulem a nós mesmos.
Alguns dos ensinamentos budistas, religião pela qual o jogador se tornou adepto no início da sua carreira, auxiliaram-no bastante ao longo da sua trajetória a superar as sérias lesões que o afligiram e chegaram até mesmo levá-lo a pensar em abandonar o futebol precocemente.
No entanto, demorou para que ele compreendesse alguns elementos fundamentais que estavam lhe causando sofrimentos, principalmente após o término da copa de 1994: o tão sonhado título mundial que era o seu objetivo na vida perpassava muito mais pelo desejo do outro (pai) com o qual ele havia se identificado mediante a suposta promessa feita a ele na infância cuja execução foi a sua motivação durante boa parte da vida profissional.
Como o foco do atleta estava nessa conquista específica, ele não conseguia enxergar as outras tantas vitórias obtidas na sua carreira e o quanto era admirado pelos seus compatriotas e, por que não, até mesmo pelo seu próprio pai que custou muito a lhe expressar o seu reconhecimento.
E para a ocorrência dessa mudança de visão interior também foi essencial focar em um dos princípios do budismo que já havia sido lhe transmitido no começo da sua iniciação, mas que, às vezes, somente com o amadurecimento emocional é possível o seu entendimento: o que importa efetivamente é a jornada, pois os verdadeiros objetivos são descobertos ao longo do caminho.