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COMO SEGUIR RETO EM LINHAS CÍCLICAS E TORTAS? PARTE 1

Por Jairo Maurano Machado

Hodiernamente, a discussão sobre a garantia da participação das pessoas com deficiências na vida em sociedade tem ganhado bastante destaque, face as inúmeras tensões que se agregam nessa temática. Se na educação se discute qual seria o lugar ideal para educá-las, no campo do trabalho algumas políticas foram criadas para lhes assegurar postos de trabalho.

Na realidade, toda essa discussão está imbricada com um direito muito mais básico, correspondente no efetivo exercício da cidadania por uma grande parcela da população que, por séculos, tem seus direitos cerceados e vilipendiados simplesmente por fatores ligados a questões metafísicas, religiosas, biologizantes e até mesmo culturais e sociais.

Se na Antiguidade ou no período medieval as pessoas com deficiências eram consideradas bênçãos da Providência divina ou seres dominados pelo demônio, atualmente elas são compreendidas, de modo geral, como um grupo de segunda classe, dependente e sem nenhum valor, e aqui se entenda valor econômico. Dessa construção seria possível extrair algumas indagações.

Primeiramente, é de se notar que, no aspecto histórico, não se verifica uma linearidade entre uma e outra concepção sobre as pessoas com deficiências. Sugere-se que o que há, na verdade, é uma única estrutura que se modifica apenas por contextos que a tangenciam, como as evoluções tecnológica, econômica, cultural e social.

É evidente que a humanidade se desenvolve ao longo do tempo e com ela tudo aquilo que está ao redor, mas intenciona-se aqui acreditar que algumas estruturas ainda permanecem, como justamente aquela estabelecida no que diz respeito à participação social das pessoas com deficiências. Resta saber, a partir dessa indagação, qual o motivo que justifica a manutenção dessa estrutura. No entanto, o que se pretende aqui vai além do que responder, e sim, evidenciar e frisar algumas dessas questões.

Nesse sentido, outro ponto que merece destaque é o fato de as pessoas com deficiências sempre ocuparem nesse cenário a posição de terceira pessoa. Não é raro ler e ouvir que “às pessoas com deficiências é necessário garantir proteção de seus direitos”. De modo algum se pretende dizer que a elas não cabem direitos, mas quais direitos? Ditos por quem? Por elas mesmas?

Ao que se vê, somente nos últimos anos é que ganhou espaço a compreensão de que esses direitos e garantias só podem ser discutidos pelas próprias pessoas com deficiências. Ora, nada mais esperado do que construir um sistema de proteções a partir das discussões feitas por esse próprio grupo.

Caminhar nessa perspectiva é o equivalente a entender que as pessoas com deficiências não são coadjuvantes de suas próprias vidas, mas sim, as verdadeiras e legítimas protagonistas. Não à toa que a convenção Internacional sobre os direitos das Pessoas com deficiência, publicada pela ONU em 2007, traz em seu bojo a ideia do “nothing for us without us” (nada sobre nós sem nós).

Provavelmente, seja essa a mais importante inovação no tocante à garantia promovida pelo Estado sobre o exercício da cidadania pelas pessoas com deficiências. Em vez de dar voz, é necessário também escutar. Daí que decorre a importância de se ocupar o tão famigerado lugar de fala. Nada adiantaria permitir a fala sem que houvesse o interlocutor.

E mais que isso, não basta simplesmente haver quem fale e/ou escute, é preciso passar da abstração para a concretude. É necessário que essas falas se tornem direitos moral e positivada mente garantidos.

Como dito anteriormente, se toda essa discussão permeia diversos aspectos da sociedade, inclusive o cultural, é também este aspecto que será utilizado para ilustrar todo esse percurso, que de linear nada tem. Afinal, se a arte imita a vida, deve reproduzi-la em todas as suas formas.

Partindo dessa proposta, vale mencionar aqui a primeira das obras cinematográficas que servirão de base para ilustrar as indagações anteriormente explicitadas. Trata-se do filme o Homem elefante, de 1980, que narra a trajetória de um homem que tem a maior parte de seu corpo deformado e, por conta disso, é exibido como aberração em circos e espetáculos, até que um médico o encontra, retira-o desse ambiente e passa a tutelá-lo.

Dessa breve descrição já se pode inferir ao menos aquelas primeiras concepções acerca das pessoas com deficiências, a metafísica e a teológica, pois ora John Merrick (John Hurt) é visto como um monstro, ora recebe atenção do dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins), que numa postura caritativa o acolhe.

E a partir do momento em que essas pessoas, segundo a visão teológica, são consideradas filhos de Deus, é necessário que elas, agora, passem a seguir determinados comportamentos, do que decorre a necessidade do castigo, do isolamento e da segregação.

Surge, então, comisso a visão médica e patológica acerca da deficiência. Se antes as pessoas não eram acolhidas por serem endemoniados, agora, na condição de seres cristãos, devem ser isolados e segregados da sociedade, pois afinal o convívio coletivo seria um preço muito alto a se pagar. Isso se ilustra no acolhimento feito pelo Dr. Treves, em que Merrick ainda é mantido isolado e segregado da sociedade à medida que sua trajetória se desenvolve no contexto do hospital.

Entretanto, esse acolhimento oferece paralelamente outra compreensão, qual seja, da educabilidade das pessoas com deficiências. Soma-se então às concepções metafísica, médica e patológica a perspectiva pedagógica.

E novamente retomando as indagações propostas anteriormente, outra passagem do filme que vale ser frisada é aquela em que se descobre que Merrick se expressava bem, ainda que com certa dificuldade de falar, assim como era bastante habilidoso com confeccionar dobraduras baseado na imaginação e nas memórias que possuía.

Por essa passagem é possível inferir algumas situações. A primeira delas é de que até então os deficientes, a despeito de toda a evolução que parte do abandono da visão deque eram coisas para assumir a condição de seres humanos filhos de deus, ainda eram objetificados. Veja-se que as capacidades de John Merrick geram grand esurpresa para Frederick Treves.

Questiona-se, a partir disso, se de fato houve algum tipo de superação daquelas concepções oriundas da antiguidade e da Idade Média. Parece mais prudente afirmar que, na realidade, essas ideias coexistem até os dias atuais, configurando uma certa sensação de atemporalidade. E com essas ideias muitas outras são consequências, como a ignorância e o preconceito. Nesse sentido, válido então assumir que não há linearidade, mas apenas contextos distintos que conservam as mesmas estruturas.

E ao menos dois outros trechos do filme retratam uma espécie de questionamento ético feito pelo Dr. Treves; o primeiro deles feito por ele próprio, ao questionar para sua esposa se sua conduta não seria a mesma do dono do circo onde vivia Merrick; o segundo momento que indica esse questionamento parte da enfermeira do hospital, ao demonstrar para o médico seu descontentamento em relação à exposição que John estava sofrendo por conta das visitas que recebia de pessoas estranhas.

Todo esse quadro vai culminar numa superexposição de Merrick, o que vai estimulá-lo a fugir e, em seguida, a ser perseguido por algumas pessoas. É neste momento, em que John é acuado por essas pessoas e se vê obrigado a bradar que também é um ser humano, o que demonstra o que vem ocorrendo ao longo da história: o fato de as pessoas com deficiência não serem ouvidas.

Até mesmo a forma do discurso em que isso é proposto traz a ideia de que as concepções já descritas ainda estão presentes hoje em dia. Como salientado anteriormente, não é raro ouvir que é preciso “dar voz às pessoas com deficiência”, quando, na verdade, voz elas já possuem. Dir-se-ia então que as pessoas com deficiência “precisam ser ouvidas”, do que se denota uma postura que ainda implica uma iniciativa focada nas próprias pessoas com deficiência, excluindo e ocultando a real necessidade, no sentido de que a atitude de ouvir deve partir, sim, da sociedade também.

Em outras palavras, é necessário ressignificar as visões, aqui entendidas como equivocadas, de que “é preciso dar voz” ou de que “as pessoas com deficiência devem ser ouvidas” e reconhecer que a sociedade necessita, e muito, ouvir antes de formular quaisquer concepções.

Provavelmente o quadro nos dias atuais seja bastante diferente e tenha evoluído de algum modo, especialmente quando se tem em vista a perspectiva biopsicossocial, adotada por diversos documentos internacionais e nacionais, tais como a Convenção da ONU de2007 e, no plano nacional, a Lei Nº 13.146/2015, a Lei Brasileira  de Inclusão (LBI).

Por essa perspectiva, afasta-se a definição de deficiência de conceitos metafísicos e/ou biomédicos e passa-se a indicar que limitações existentes na sociedade fazem parte daquela definição. Retira-se a centralidade da deficiência sobre quem a possui e articula-se essa questão com outros fatores, como a existência de barreiras de várias origens (arquitetônica, comunicacional, tecnológica e atitudinal) e o consequente oferecimento de proposta de sua eliminação.

A deficiência, então, deixa de ser compreendida como uma lesão, um defeito, um desvio que alguém possui. Ela é entendida, agora, como um conjunto de fatores existentes no ambiente que podem dificultar e até mesmo impedir a participação da pessoa na vida em sociedade e, consequentemente, exercer sua cidadania. Não se trata mais então de uma característica física que a pessoa apresenta, mas dos obstáculos que dificultam a participação social dessa pessoa por conta daquela característica.

Continua na próxima parte em que discutiremos mais sobre a perspectiva biopsicossocial das deficiências.

Retomando a discussão colocada na primeira parte do artigo, toda a construção da perspectiva biopsicossocial deriva do movimento denominado de Disability Studies ,constituído por teóricos inicialmente oriundos da Inglaterra. Os estudos deste grupo deram origem ao modelo social da deficiência, segundo o qual se evidenciaa influência social sobre a definição de deficiência, pautada nas relações de exercício do poder de classes dominantes sobre as dominadas, especialmente como avanço do sistema capitalista, uma vez que a deficiência é preponderantemente entendida como uma tragédia, um desvio da norma.

Nesse sentido, todo aquele que não atenda a um determinado padrão imposto pelo capitalismo é considerado um ser desviante. Todavia esse raciocínio apresenta algumas falhas. A primeira delas é que a imposição desse padrão vem justamente pela minúscula parcela da sociedade que possui o poder, isto é, pela classe dominante. É ela quem dita o que é a norma e o que é o desvio.

Em segundo lugar, a deficiência, assim vislumbrada como fruto socialmente estabelecido, tem como consequência a rotulação de atributos aqueles que a possuem, isto é, além das características biológicas e/ou físicas oriundas de alguma lesão, a pessoa acaba por ser rotulada pela sociedade por alguma atribuição correlacionada com aquelas características, seja de ordem corpórea ou funcional. Sugerir-se-ia, inclusive, que esse estabelecimento de relações é que dá sustentação ao capacitismo.

Seguindo esse pensamento, infere-se que a deficiência é atualmente compreendida como um processo de opressão social, em que as pessoas com deficiências estão sujeitas a consequências que vão muito além da lesão que lhes acomete, haja vista que a própria sociedade, supostamente perfeita, a todo momento lhes impõe inúmeros obstáculos, tanto de ordem arquitetônica, quanto comunicacional ou mesmo atitudinal.

E novamente lançando mão da sétima arte, vale citar o filme Hasta La Vista, rodado na Bélgica, em2012. Ele retrata a aventura de três jovens deficientes que pretendem fazer uma viagem à Espanha para se divertirem. Contudo, o desafio dos garotos tem início já no âmbito de suas famílias. Em uma dada cena , percebe-se claramente a noção de opressão social, à medida que a decisão sobre como a viagem deve ocorrer parte dos pais e não dos próprios jovens.

Evidencia-se, pois, a necessidade dos garotos de superarem esse primeiro obstáculo, qual seja, conquistar a autonomia sobre como gostariam de conduzir a viagem. Mas ao longo do filme essa “conquista” vai sendo apresentada, seja pela própria vontade dos três protagonistas, seja por questões alheias, como por exemplo a troca de uma van perfeitamente adaptada às necessidades de cada um por uma outra cujas condições de funcionamento são bastante duvidosas.

Dessas passagens verifica-se um dos grandes desafios impostos às pessoas com deficiências em suas vidas, já mencionados anteriormente, a luta por direitos, a conquista por autonomia e liberdade, o direito de protagonismo sobre suas próprias vidas. Retoma-se então o quanto proposto na primeira parte do artigo.

De outra parte, é válido mencionar que, relativamente a essa luta por autonomia e independência, alguns pequenos avanços vêm sendo percebidos. Cite-se, por exemplo, o advento do instituto jurídico denominado de Tomada de Decisão Apoiada (TDA), previsto pela LBI.

Por essa nova figura jurídica, constante no Código civil brasileiro de 2002, ainda que a pessoa com deficiência necessite de auxílio na tomada de decisão durante a prática dos atos da vida civil, ela poderá indicar, por sua livre manifestação de vontade, quais as pessoas de quem deseja apoio. Com isso, aquilo que antes era entendido como regra no sistema jurídico brasileiro relativamente à capacidade civil das pessoas com deficiências tornou-se a exceção.

Se antes essas pessoas estavam sujeitas a sofrerem processos de interdição para serem curateladas, hoje a autonomia de vontade é presumida, de modo que o auxílio é que se configura como exceção e assim só será solicitado por vontade da própria pessoa.

Mas em uma situação ou em outra é visível que a deficiência infelizmente ainda é tida como tragédia, como defeito, como desvio, o que acarreta diversas consequências para as pessoas que compõem esse grupo, face a opressão social a que estão submetidas, seja para fazer uma simples viagem, seja para a prática de atos mais solenes.

Isso também acontece por conta do quanto já comentado anteriormente, relativamente a ausência de linearidade. Se assim o fosse, momentos de ruptura e de quebra de paradigmas seriam percebidos. Contudo, o que se verifica é a coexistência das concepções já citadas e, eventualmente,  a predominância de algumas delas, por mais perversas que sejam.

Ainda que  a visão pautada em um viés de caráter biopsicossocial seja muito mais adequada que aquelas noções teológicas e médico-patológicas, a possibilidade de coexistência de todas essas visões impõem alguns cuidados: necessário verificar se o novo discurso de fato corresponde à realidade; justamente em razão disso é necessário também sempre ter em mente a formulação de um auto-questionamento ético no sentido de saber se as atitudes dos indivíduos estão correspondendo as suas falas; e finalmente, mais que isso tudo, é preciso ouvir.

É importante também haver uma preocupação constante acerca dos processos que garantam às pessoas com deficiências o protagonismo sobre sua própria trajetória. Na verdade, muito mais que “garantir a essas pessoas”, é preciso que elas mesmas participem dessas discussões (nothing for us without us). Somente assim é que estarão legitimada se empoderadas para lutar pelo seu espaço no convívio social, para eliminar o constante processo de invisibilização que vêm sofrendo e, finalmente, para garantir o seu pleno e efetivo exercício da cidadania.

Sobre o autor

Jairo Maurano Machado é graduado em direito pela Universidade de Sorocaba – UNISO(2011). Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pelo Instituto verbo Jurídico (2020) e é servidor público do Judiciário Trabalhista da 15ªRegião desde 2011 (TRT15). Atualmente é mestrando do Programa de pós-graduação em educação Especial da universidade Federal de São Carlos (PPGEES UFSCAR).

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POR MÁRCIO SANTIM