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METALHEAD

Por Marcio Santim

O mundo devastado por algum tipo de catástrofe, provavelmente provocada pela atuação humana no planeta: esse é o tema apresentado no presente episódio de cunho pós-apocalíptico que se constitui como o mais curto da série Black Mirror, com 41 minutos de duração.

A trama não apresenta elementos suficientemente claros para a realização de uma análise precisa sobre o episódio, no entanto, trabalharei com algumas hipóteses interpretativas fundamentadas mais no campo subjetivo em que penso serem condizentes com as ideias sugeridas pelo autor.

Primeiramente, quando menciono a possibilidade dessa destruição em massa do planeta ter sido ocasionada pelo próprio Homem, parto da constatação do tipo de seres que começaram a dominar o mundo, caracterizados por poderosos cães robóticos repletos de dispositivos relacionados à inteligência artificial.

Grosso modo, a inteligência artificial é uma criação humana que tem potencializado os mais variados tipos de instrumentos tecnológicos que servem para ampliar o alcance e as funções dos diversos membros do corpo humano, tais como olhos, ouvidos, mãos, no sentido de substituir gradativamente por algoritmos o pensamento que estava por detrás e comandava anteriormente o funcionamento básico desses objetos.

Em outras palavras, a IA tem colaborado gradativamente e de forma acentuada para que a maior parte das atividades relacionadas ao trabalho, estudo e lazer prescindam da atuação humana para a sua realização, pois com a criação de softwares altamente complexos, é possível uma atuação cada vez mais autônoma por parte do referido tipo de inteligência.

Sem dúvida, uma preocupante realidade em que se em alguns aspectos favorece o desenvolvimento da sociedade, por outro ângulo nos tem mostrado toda a sua dimensão nociva, justamente por segregar muitas pessoas quanto ao usufruto dos seus benefícios.

Tomemos o trabalho como exemplo: quantos empregos, e importante frisar, já haviam sido eliminados com a revolução tecnológica, ainda estão para ser descartados nesse profundo e desenfreado avanço digital por que atravessamos? Não podemos sequer chamar de projeto de desenvolvimento social, algo que nem chega a contemplar quem de fato seria a maior interessada: a sociedade como um todo.

Contrariamente, exige-se daqueles que estão empregados cada vez mais sacrifícios, horas e mais horas de trabalho, constante adaptação, resiliência, a fim de retardar a sua entrada na vasta estatística de desempregados. Processo esse de grandes transformações, chamado por muitos intelectuais de novo darwinismo social, fazendo alusão ao fato de que somente uma pequena parcela da população irá sobreviver nessa selva tecnológica.

É uma grande enganação o discurso relacionado à necessidade de crescimento econômico mediante desmedidos aumentos no PIB (Produto Interno Bruto), destinados à geração de empregos, diante do tamanho da população habitante desse planeta.

Além do mais, se levarmos em conta as reduções de custos relacionadas à adoção de máquinas com IA frente a contratação de funcionários, que tem tornado a maior parte dos empregos obsoletos. Tudo isso não é de forma alguma predição, mas sim realidade facilmente constatável.

A ideia de empregabilidade é uma falácia, pois joga toda a responsabilidade nos indivíduos quanto ao fato de estarem aptos para conseguirem ou manterem o emprego em uma dinâmica empresarial aliada à IA cuja lógica funcional se caracteriza exatamente pelo seu oposto, ou seja, no incansável rastreamento de todas as atividades laborais que possam ser suprimidas ou deixadas ao encargo das máquinas.

O episódio nos traz exatamente essa perspectiva da implantação de um mundo totalmente hostil à vida humana em que observamos o império da escassez, junto às máquinas de IA que dominam e exterminam as pessoas de maneira fria e inescrupulosa.

Os animais, no caso os porcos, tal como apresentados na história, também são eliminados pelos cães robôs; a vegetação aparece seca e acinzentada. Aliás, todo o episódio é exibido em preto e branco justamente para nos sensibilizar quanto à falta de vivacidade em um mundo aniquilado de suas riquezas naturais.

A explicitação de uma crítica ecológica em que as constantes agressões sofridas pela natureza em razão do estabelecimento de práticas devastadoras voltadas para a aceleração do desenvolvimento econômico em nome da manutenção da vida dos indivíduos, contrariamente pode provocar exatamente o seu colapso, pois nesses discursos regidos por idealismos e realismos dogmáticos, esquece-se de que essas mesmas pessoas também fazem parte da natureza e necessitam dela para sobreviver.

Assim como precisamos de comida, roupas e outros objetos para podermos viver, também são a nós imprescindíveis a água e o ar respirado; elementos naturais que nenhum aparelho de IA poderá produzir o suficiente, a fim de que toda a vida na Terra seja preservada.

Certamente não chegamos ao mundo apocalíptico apresentado Metalhead, mas diante daquilo que observamos na sociedade atual, não sabemos o quanto estamos distantes de uma catástrofe generalizada que possa destruir a humanidade ou tornar a vida na Terra praticamente inviável.

Atualmente, estamos vivendo essa dramática pandemia Covid-19 causada pelo coronavírus, que já serve como um grande alerta do quanto somos frágeis diante de fenômenos naturais.

Temos urgência de repensar o modo de funcionamento social, no intuito de podermos utilizar os recursos tecnológicos disponíveis em benefício de todos e não apenas das elites que dominam a sociedade nos seus mais variados seguimentos.

Em um mundo com o grau de avanço tecnológico tal como podemos observar, a miséria pode ser considerada como uma produção genuinamente humana e por consequência depende exclusivamente de nós extirpá-la da face do planeta.

Por exemplo, o potencial tecnológico para produção agrícola poderia facilmente eliminar a fome existente no mundo mediante a produção e distribuição dos mais variados tipos de grãos.

Porém, em muitas partes do mundo, o que vemos de fato é algo sombrio tal como o clima mostrado pelo episódio. Ambientes inóspitos, sem condições mínimas de saneamento básico e higiene, destruídos por guerras ou guerrilhas; pessoas extremamente magras e desnutridas; mortalidade infantil; torturas, estupros e abusos sexuais.

É lamentável, em pleno século XXI, ainda encontrarmos esse nível de luta pela sobrevivência nos países subdesenvolvidos em que, por outro lado, muitas nações desenvolvidas viram as costas para essa trágica realidade; mas como o planeta é um habitat comum a todos os seres vivos, em algum momento as consequências da miséria social e da destruição da natureza poderão ser sentidas globalmente; trata-se apenas de uma questão de tempo.

Bella, a personagem principal do episódio, junto com dois amigos se arriscam a sair do seu esconderijo para ir num armazém abandonado, a fim de encontrar algo que havia prometido a um dos sobreviventes. Tudo nos levava supor que se tratava de alguma coisa essencial para a manutenção da vida, tais como alimentos ou suprimentos.

No entanto, as suas missões não foram bem-sucedidas em razão de terem sido atacados por um cão robótico. No final do episódio, aparece que os objetos procurados estavam dentro de uma caixa e se tratavam de ursos de pelúcia.

Provavelmente, esses brinquedos seriam destinados a alguma criança sobrevivente. Talvez de maneira tão importante quanto ao alimento que nos mantem fisicamente vivos, necessitamos também de algo que nutra a alma, que nos faça interagir com o mundo de uma forma afetiva que destoe da tonalidade acinzentada, pragmática e deprimente daquela que insistem em nos fazer acreditar que seja a essência da realidade.

Os ursos de pelúcia representam esse rompimento com aquilo que nos é mostrado como fundamental para a existência. O lado lúdico como uma forma de promoção da vida ao lado dos elementos naturais que fazem com que nosso corpo pulse e se mantenha vivo. Um pouco no sentido da música Comida, interpretada pelos Titãs, conforme trecho abaixo:

Bebida é agua
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte

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POR MÁRCIO SANTIM