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NATAL (WHITE CHRISTMAS) – PARTE 1

Por Marcio Santim

Esse episódio não está incluído nas temporadas de Black Mirror, sendo um especial exibido pela primeira vez na TV em dezembro de 2014, que contém três histórias interligadas no seu enredo.

Em termos psicológicos, poderíamos começar a análise a partir de qualquer parte, mas para não perder o foco no desenrolar da história, será observada a sequência dos acontecimentos conforme apresentados pela trama.

Os dois personagens principais Joe e Matt aparecem isolados em uma residência no meio de um deserto coberto por neve, prestes a comemorarem o Natal. Enquanto Matt prepara a ceia, tenta também a todo custo estabelecer um diálogo com o seu companheiro Joe, visto que havia menção de já fazer cinco anos em que estavam isolados naquele local e ainda não haviam minimamente se comunicado.

Apesar das investidas de Matt para que Joe falasse algo, este se mantém inerte,em total silêncio, apenas observando o seu companheiro que em razão de hipoteticamente não suportar mais aquela monotonia, resolve começar a contar sobre as razões de estar confinado naquele lugar.

A princípio, Matt expõe a Joe o seu entretenimento predileto, que também lhe rendia dinheiro, caracterizado por liderar um grupo de pessoas, uma espécie de clube voltado para bisbilhotar os relacionamentos amorosos e sexuais dos seus integrantes, com a mútua aceitação e conhecimento de todos os participantes.

Com toda a sua eloquência e experiência nas artimanhas relacionadas à conquista amorosa, Matt começa a aconselhar detalhadamente em tempo real um jovem integrante do grupo em como se aproximar e conversar com uma garota dentro de uma festa.

O contato visual e auditivo era possibilitado por meio de um aparato tecnológico chamado “Z-Eye” (olhos Z) implantado nos olhos das pessoas. Um tipo de câmera intraocular que permitia às pessoas, mesmo sem estar fisicamente presente em um ambiente, visualizar remotamente e se comunicar verbalmente como sujeito que se encontrava fisicamente num determinado local. Tal conexão e transmissão de informações eram feitas pela Internet em tempo real.

O jovem Harry aparentava ser muito tímido e inseguro, fato esse que o deixava totalmente submisso aos comandos de Matt e sob os olhares indiscretos dos demais telespectadores integrantes do grupo, que ficavam muito ligados na situação e sempre que possível interagiam com o líder, a fim de sugerir algum tipo de direcionamento ao espetáculo da vida privada ora presenciado. Na realidade, essa parte do episódio faz lembrar bastante a dinâmica existente nos reality shows do tipo Big Brother.

Matt denominava esse tipo de atividade realizada como assistência romântica in loco. Para surpresa e apreensão de Harry, a técnica de conquista utilizada por Matt acaba de certa forma funcionando no primeiro encontro e a garota convida o jovem para irem até a casa dela e assim ficarem mais à vontade. Para delírio do auditório, todos os indícios apontavam que os expectadores iriam observar uma relação sexual de alguém que nunca havia transado.

Mas a situação acabou sendo bem diferente. Na realidade, não foram os conselhos dados por Matt os responsáveis pelo êxito no processo de sedução, mas sim o fato de a garota Jennifer que tinha distúrbios paranoicos, ter em um momento observado Harry conversando “sozinho”, quando de fato comunicava-se com seu assessor, e com isso deduzido que ele também era incomodado por vozes sinistras.

No entanto, como a garota havia interrompido o seu tratamento medicamentoso e acreditava que as vozes perturbadoras que ouvia eram de fato reais,ela começou a pensar que Harry também apresentava esse sofrimento e acabou por força-lo a tomar junto com ela uma bebida envenenada que provocaria a morte de ambos.

Matt percebeu a gravidade da situação e insistiu para que Harry saísse imediatamente daquela residência,porém não foi possível evitar a tragédia. A partir disso, para se esquivar do descobrimento quanto ao seu envolvimento no crime, Matt tenta destruir todos os arquivos que continham aquelas imagens, mas a sua esposa acaba descobrindo e coloca um fim no relacionamento entre eles, bloqueando a imagem capturada pelos olhos Z deforma que não conseguissem mais se ver.

O que podemos citar como fundamental nessa parte do episódio para a realização da nossa análise, refere-se à coexistência na atualidade de fortes disposições psicológicas relacionadas ao voyeurismo e ao exibicionismo, aliadas aos mais variados dispositivos tecnológicos que permitem e estimulam a manifestação desses fenômenos de forma ímpar ao longo da história.

Há toda uma indústria do entretenimento, facilitada pela disseminação de aparelhos eletrônicos, que produz e divulga incessantemente o objeto de desejo tanto de voyeurs (prazer em ver) quanto de exibicionistas (prazer em mostrar),que é justamente a intimidade.

Uma intimidade bem diferente, se comparada a de tempos pretéritos, como por exemplo, aquela existente no início do século XX quando Freud estudou oscitados fenômenos, principalmente pelo fato dos recursos tecnológicos possibilitarem que ela seja maquiada e manipulada até o âmago da sua estrutura,tornando-se uma fugaz representação daquilo que se concebia como intimidade,exatamente pela superficialidade que a tem caracterizado.

Ao migrar do âmbito privado para o espaço público, a intimidade se transforma em bem de consumo, espetáculo e consequentemente observamos uma desfiguração da afetividade que lhe era inerente. Mais especificamente, numa sociedade em que se imperam egos inflados, obcecados por selfies e curtidas frente aos espelhos negros, troca-se a afetividade pela frieza competitiva existente nas redes sociais.

Uma nova forma de configuração da subjetividade que tem necessidades impositivas socialmente de se expressar nos mais variados campos virtuais para se certificar da sua existência nesse mundo de relações mediadas pela tecnologia.

As vozes ouvidas por Jennifer, em decorrência de seu distúrbio psicológico, onde o principal sintoma se apresentava como paranoia, caracterizam-se como metáfora relacionada a diversos tipos de situações reais em que as pessoas se dispõem a se expor nas redes sociais muitas vezes para uma plateia anônima cujas vozes de aprovação e reprovação, representadas materialmente sob a forma de comentários padronizados e principalmente por símbolos infantis chamados emoticons ou emojis, soam constantemente nas suas consciências e têm servido como parâmetros para a formação das suas identidades.

Em razão da exposição realizada pelas pessoas nas redes sociais se dirigir a uma plateia e as reações apresentadas por essa última se mostrarem padronizadas, a recepção a essas reações que se constituem como vozes generalizadas e impessoais se torna difusa e diante delas as pessoas têm se submetido para incondicionalmente apresentarem seus comportamentos que por sua vez também assumirão o feitio da impessoalidade.

Com frequência, momentos de lucidez frente a essa realidade de dominação/ submissão demoram demasiadamente para aparecer, pois o controle nos meandros da internet não se apresenta de forma brutal e impositiva, contrariamente constitui-se mediante elementos profundamente sedutores e manipuladores.

Tal como foi o caso do personagem Harry que na realidade foi seduzido pelo fato de poder entrar num grupo em que disporia de todos os recursos eficazes quanto aos aconselhamentos para se conquistar uma garota. Mas, mesmo que seja gratuita a utilização da maioria dos diversos aplicativos eletrônicos,sempre há um preço a ser pago e sem dúvida muito maior do que podemos imaginar.

No momento em que Harry está no apartamento de Jennifer, ele implora enfaticamente para que os seus observadores os deixassem a sós e desconectassem os olhos Z: “Eu quero estar sozinho com ela”.

Porém, essa não era a regra do jogo, pois o consentimento na utilização desses aplicativos, na maior parte dos casos, implica na renúncia de boa parte da privacidade e a contradição se apresenta justamente no fato de que mesmo sozinho e isolado fisicamente, alguém pode saber onde e com quem você está. Certamente essa objetividade histórica tem propiciado aos mais variados tipos de paranoias transporem o plano subjetivo para se manifestarem como realidade efetiva. Continua na próxima parte.

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POR MÁRCIO SANTIM