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O POÇO

Por Marcio Santim

Sempre tenho dúvidas do quanto podem acrescentar às pessoas os filmes e outros tipos de produções cuja forma se apresenta repleta de elementos estéticos caracterizados por extrema violência em que, diante da quantidade de sangue estampado na face de seus personagens, chegamos até mesmo a achar estranho quando alguma cena não aparece impregnada pelo vermelho ou composta por corpos desfigurados.

Certamente que esse tipo de estética artística, com seus recursos tecnológicos que permitem com que a ficção se aproxime cada vez mais da realidade, tem colaborado significativamente para naturalizar a violência,tornando-nos cada vez mais insensíveis frente às barbáries deflagradas nos mais variados âmbitos da nossa sociedade.

Nesse sentido, podemos considerar a concretização dos espancamentos e sangramentos contumazes como consequência dos diversos tipos de assédios e torturas psicológicas preexistentes e silenciosas que, na maior parte das vezes, somente sinalizam a sua existência no momento em que desembocam na agressão física.

No entanto, apesar de toda a violência chocante existente no filme espanhol O poço que inclusive em termos estéticos se aproxima muito dos jogos de terror estilo survival existentes em várias plataformas de vídeo game, essa produção apresenta um caráter profundamente ambíguo em razão do conteúdo inerente à sua história nos colocar muitas questões para refletirmos, tanto em aspectos sociais quanto psicológicos.

Não cabe a mim asseverar quais foram as reais intenções do autor e produtores em amplificar esteticamente a bestialidade humana para expressar dinâmicas sócio econômicas que sedimentam diversos tipos de relações interpessoais e sociais, mas coloco uma hipótese para pensarmos: será que a nossa consciência está tão embrutecida a ponto de precisarmos constantemente de doses mais elevadas de violência para podermos nos atentar para a existência e crescimento de profundas injustiças sociais?

Em um primeiro plano, observamos que o filme realiza essa crítica social de maneira bem contundente. O poço apresenta-se como metáfora de uma sociedade cuja base econômica de funcionamento produz diversos segmentos sociais em que as diferenças são marcadas não somente pelas esperadas singularidades culturais ou individuais, mas infelizmente também por significativas desigualdades determinantes do grau de acesso aos bens materiais. No caso, bens esses que não seriam considerados supérfluos, mas exatamente aqueles essenciais para a manutenção da vida, a saber: comida e bebida.

Enquanto certas pessoas que se encontravam nos andares mais elevados do poço tinham alimentos em fartura e os desperdiçavam ao seu bel prazer, outras que ocupavam os andares inferiores recebiam os restos deixados pelas primeiras por meio de uma plataforma que se deslocava verticalmente no interior dessa prisão.

Importante frisar que as sobras dos alimentos não eram deixadas por livre e espontânea vontade das primeiras pessoas mencionadas no parágrafo anterior, mas sim devido às regras existentes nesse mundo distópico em que a plataforma se encontrava programada para permanecer apenas durante um curto período de tempo em cada andar.

As relações estabelecidas no poço também trazem à tona o grau de individualismo existente no mundo atual em que pouco importa para muitos daqueles que vivem em um patamar econômico mais elevado, o impacto das suas ações ou omissões perante aquelas pessoas mais fragilizadas na hierarquia social.

Uma noção caracterizada pelo fato de somente se ter a percepção da existência de uma realidade que se caracteriza única e exclusivamente por aquele mundo particular em que determinadas pessoas vivem. No caso do filme,esse mundo particular está representado nas dinâmicas de convívio presentes em cada andar componente do poço.

Basicamente, encontramos duas perspectivas entre a maioria das pessoas que estava naquele ambiente: a ambição de ascender aos primeiros andares e o total desprezo por aqueles que se encontravam nos níveis mais baixos, a ponto de nem se importarem se conseguiriam se alimentar para poderem sobreviver.

Porém, pelo menos em termos formais, como uma das propostas do sistema inerente ao funcionamento do poço era desenvolver nas pessoas um tipo de solidariedade espontânea, as posições por elas ocupadas nos andares não se apresentavam estáticas, ou seja, após um certo período de tempo ocorriam as suas transferências para outros andares, a fim de poderem experimentar a realidade inerente a cada um.

Dessa forma, uma mesma pessoa poderia experimentar os mais variados graus de fartura, moderação ou escassez, conforme a sua localização dentro do poço, independentemente de se ter algum controle sobre isso.

Analogicamente, é exatamente isso que ocorre na realidade devido à interferência dos mais variados fatores. Por exemplo, um empresário próspero pode vir a falir e consequentemente ter que diminuir o seu padrão de vida econômico. Outro fato, talvez menos comum, diz respeito àquelas pessoas provindas de famílias pobres que conseguiram obter um bom emprego ou montar o seu próprio negócio e tornaram-se bem-sucedidas financeiramente.

A sociedade possui as suas próprias vicissitudes que muitas vezes não dependem exclusivamente da capacidade individual para mudar de posições na hierarquia social, em termos apenas de competência ou incompetência.

Dentro do poço, as experiências interpessoais também variavam, pois quando alguém mudava de andar seguia-se também uma alteração da pessoa com quem era dividida a permanência naquele ambiente.

Agora entrarei na análise psicológica acerca do filme, que não deixa de estar relacionada àquela descrita anteriormente de ordem sociológica, porém possui outras características que podem nos auxiliar a entender tanto questões pertinentes a nossa vida pessoal quanto à dinâmica social pela qual estamos envolvidos e também somos determinados.

Vamos abstrair os comportamentos e modos de pensamentos apresentados pelos demais personagens e focar apenas no personagem principal.

Goreng adentra e desperta em um mundo diferente e a sua mente começa a trabalhar de forma similar aos mecanismos existentes na atividade onírica (sonho) em que imagens se sucedem rapidamente e algumas vezes aparecem distorcidas ou sobrepostas a outras imagens ou situações. Além disso, a realidade sempre se faz presente por meio de lampejos que remetem a determinadas situações vividas efetivamente, tal como exemplo, a entrevista realizada antes de ser aprovado para entrar no poço.

Trabalharei com a hipótese de que os personagens com quem Goreng interage no referido ambiente são projeções de aspectos existentes no seu próprio inconsciente, representando frustrações, medos, desejos, culpa;associados com representações de pessoas com que ele possa ter se relacionadona sua vida real.

As lutas sangrentas travadas por Goreng ao longo do filme, que inclusive simbolicamente representam algumas enfrentadas por todas as pessoas na sua vida,seja em termos imaginários ou concretos, são efetivamente derivadas dos seus conflitos interiores e trazem no seu âmago o anseio existente em todos para se realizar e encontrar a felicidade na vida.

Felicidade essa não aquela padronizada e derivada das receitas de auto ajuda vendidas a exaustão nos meios de comunicação de massa, mas sim aquela dimensão que somente pode ser encontrada por meio de um profundo e árduo processo de autoconhecimento, que, na maioria das vezes, implica em se ter a coragem e a persistência necessárias para enfrentar os fantasmas interiores.

No sentido da clássica música Caçador de Mim, interpretada por Milton Nascimento e outros artistas, parece ser esse o movimento psicológico do personagem:

“Nada a temer senão o correr da luta

Nada a fazer senão esquecer o medo

Abrir o peito a força, numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura”

A ideia passada pelo filme era de que a grande maioria daquelas pessoas acreditava que a felicidade estava no fato de ser abastado materialmente e principalmente no falso conforto de saber que existia sempre alguém que se encontrava em situação mais precária, justamente porque ninguém conhecia exatamente o tamanho do poço, ou seja, onde se encontrava o seu fundo.

Esse tipo de situação gerava um certo comodismo por parte de muitos personagens, representando algumas atitudes complacentes que tomamos frente às inúmeras injustiças existentes na realidade, acreditando que somente o fato de nos encontrarmos em uma situação econômica melhor do que a de determinadas pessoas, possa ser suficiente para nos fazer felizes.

Dentro do poço, muitos dos personagens não apresentavam ter consciência quanto à falta de liberdade existente em quaisquer dos andares e por consequência, muito menos desenvolviam o ímpeto de sair daquela prisão.

Diferentemente, Goreng sempre demonstrou questionamentos quanto à quela realidade e o desejo de entender o que de fato acontecida naquele local e após tanto sofrimento visto e experimentando, acabou por se rebelar definitivamente contra o sistema para poder sair e mostrar aos funcionários que controlavam opoço a barbárie existente naquele mundo, a fim de que os demais também pudessem ser auxiliados a se libertarem.

Foi permitido a todos que entraram no poço levar algo consigo, cada um escolheu aquilo que mais lhe agradava ou que poderia lhe fornecer algum tipo de auxílio nos dias em que ficariam confinados naquele lugar. Muitas dessas pessoas levaram coisas banais em que nada as auxiliavam, entre elas: armas que somente serviam para aniquilar a vida dos outros e inclusive a própria vida; e numa cena aparece uma pessoa que tinha levado grande quantidade de dinheiro,mas estava em um andar tão abaixo em que isso não lhe servia para nada, pois a comida não chegava de forma alguma naquela profundidade.

Goreng, por sua vez, opta por levar um livro Dom Quixote de La Mancha,simbolizando o valor do conhecimento e a sua importância para auxiliá-lo a encontrar explicações para as aberrações que observava naquele mundo canibalesco.

A imersão psicológica realizada pelo personagem principal em que experimentou todos os tipos de horrores, sentidos no corpo e regurgitados pela alma, em um constante embate com as figuras fantasmagóricas projetadas no seu inconsciente, em que por fim se sobressai a dimensão sábia que consistia em lhe afirmar a importância de não se utilizar a violência para esclarecer as demais pessoas que ali estavam, mas sim fazer uso do convencimento pacífico, no intuito de legitimar a sua liderança para lhes trazer no mínimo a esperança da liberdade e saciedade.

Nesse intuito, Goreng e seu companheiro Baharat, apesar dos muitos fracassos resultantes na adoção da filosofia citada no parágrafo anterior em que precisaram utilizar a violência para controlar o avanço das pessoas sobre a comida, acabam se dispondo a tentar chegar ao fundo do poço para distribuir uma fração mínima de alimentos a todos os sobreviventes de modo a demonstrar que a comida existente seria suficiente para alimentar a todos, bastando para isso racionalidade e altruísmo.

No entanto, o aspecto sábio existente na sua psique o alerta que, além disso, seria necessário levar uma mensagem destinada àquelas pessoas que estavam do lado de fora e trabalhavam para o funcionamento do sistema existente no poço.

A princípio, Goreng resolve separar um doce panacota para simbolizar algo que poderia ser extremamente valorizado pelos funcionários do sistema, mas não tinha o mesmo valor para aqueles que estavam dentro do poço, sugerindo quemes mo pelo fato de estarem todos famintos, ninguém consumiu o precioso produto e ainda o devolveram para aqueles que o adoravam.

A mensagem: a felicidade como realização pessoal é relativa e intransferível, mesmo em condições de extremas dificuldades, fato esse em que se suprime a necessidade de se oprimir o outro ou tomar o seu lugar para que alguém possa encontrar a sua própria felicidade.

Mas ao chegar ao fim do poço, Goreng depara-se com uma criança serena aparentemente com bom estado de saúde, que o observa atentamente. Ele começa a imaginar que ela deveria estar com fome e, portanto, resolve lhe dar a panacota para comer.

Esse alimento não possuía vida, mas podia manter uma vida que seria a mensagem mais poderosa a ser enviada ao mundo externo, isto é, remeter a única criança existente no poço sã e salva por alguém que conseguiu ter a clareza que para sobreviver naquele ambiente hostil todos deveriam se unir e cooperar continuamente, apesar de todos os desesperos e aflições enfrentados.

Valeu a pena todo esse sacrifício experimentado pelo personagem? Deixo por conta da imaginação dos leitores: certamente o mensageiro ficará em algum dia nessa dimensão, em razão da sua missão chegar ao fim, mas talvez a sua mensagem nunca deixe de ser transmitida, podendo realizar alguma diferença na história da humanidade, tal como muitas mensagens fizeram e ainda continuam a fazer.

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POR MÁRCIO SANTIM