IAPPF

Seja feliz

Por: Humberto Luis Marques

Feliz daquele que consigo traz a tristeza.

Ser feliz possivelmente nunca foi o sonho da humanidade ao longo de toda a sua trajetória como espécie. Felicidade nunca foi nossa prioridade. Mas, em algum determinado momento da nossa história, isso passou a ser importante. O mundo passou a exigir pessoas felizes; um padrão de perfeição. O que antes poderia ser um sentimento pessoal e compartilhável, se transformou em uma exigência social, ainda que velada. As mídias sociais levaram isso ao extremo. O que era antes uma exigência, passou a ser uma obrigação. Mas, como ser permanentemente feliz? A tecnologia existe hoje para isso.

“O procedimento é muito simples. Essa nanopartícula é adicionada ao organismo e automaticamente ela se conecta a seu sistema operacional orgânico; ela vai analisar você. De imediato, ela irá coletar os dados disponíveis em seu sistema operacional; ninguém mais nasce sem ele. Então, desde o desenvolvimento embrionário até hoje, irá garimpar o que é o foco do nosso interesse: medos, anseios e incertezas e, claro, tudo o que te deixa feliz. É como um download, só que os dados são formados pelo histórico dos níveis hormonais gravados ao longo da nossa vida. Os hormônios em nosso corpo são como uma autobiografia, que revela nossos estresses e nossos prazeres; mesmo que não queiramos reviver as situações que causaram essas marcas”.

“O procedimento é seguro?”

“Quem não quer ser feliz? Para que vivermos com lembranças que nos trazem sensações negativas, nos colocam para baixo? Não há nenhum registro de qualquer tipo de problema significativo até hoje. Você bem sabe que essa tecnologia foi desenvolvida para salvar as pessoas de seus traumas emocionais, das travas que as impediam de se desenvolver; de serem felizes. Uma pessoa que sofreu uma violência; por que ela precisaria conviver com aquela lembrança; revivendo aquela situação ou suas sensações? Superar era um processo demorado e longo; a tecnologia reduziu esse tempo a nada. Não nascemos para viver com as angústias do nosso passado, dos nossos erros. Vamos ser felizes com o nosso presente e sonhar com as alegrias do futuro”.

“Como você disse, a ‘be happy’ foi desenvolvida para ajudar pessoas a superarem traumas profundos. No entanto, hoje, toda e qualquer pessoa pode acoplá-la ao seu sistema orgânico. Não precisa de nada; basta querer instalar. Se tornou febre em todo o mundo; me parece arriscado”.

“As pessoas querem ser felizes; elas precisam da felicidade para viver. O que você quer para o mundo? Pessoas vivendo tristes e cabisbaixas? A vida é curta. Não vale a pena se aborrecer. Essa nanopartícula irá gerar boas sensações no seu organismo. Não só por meio do equilíbrio hormonal, mas bloqueando e apagando lembranças desagradáveis recentes ou passadas”.

“É possível apagar lembranças e sensações?”

“Acredite, sim é possível. A tecnologia nos permite tudo; se ainda não permitiu algo, irá permitir logo, logo. Não duvide disso. E, então, podemos fazer o procedimento?”

“Ok, vamos fazer”.

Os dias seguiram dentro de sua monotonia habitual. O trabalho conectado ao corpo, e o corpo sendo uma extensão do próprio trabalho. No mundo, os limites do pessoal e do profissional se perderam em algum momento da história. Nos conectamos ao trabalho e ao lazer como se cada ser humano fosse um smartphone ambulante. Se quiséssemos, poderíamos viver em “nós” mesmos, sem a convivência física com outras pessoas, bastando com nossos olhos acionar os comandos em realidade aumentada para pedir coisas, trabalhar, jogar, se comunicar.

Só que alguns dos milhares de genes de nosso DNA ainda nos impulsionam ao convívio social. Quanto mais as pessoas foram se isolando cada qual em seu mundo, renascia uma ânsia pelo reencontro e pelo convívio; pela oportunidade de ver alguém frente a frente, sem a distância da tecnologia.

O convívio em grupo ou com outras pessoas, no entanto, traz a reboque frustações, raiva, remorso, decepções, fracasso e tristeza; situações a qual o ser humano pouco sabe lidar no seu novo mundo. Para superar o que se tornou um desafio, mantendo uma vida minimamente sociável, as pessoas foram levadas a buscar desenfreadamente a felicidade. Estar feliz consigo e com o outro. Uma felicidade que não deixa ver as marcas de imperfeições no espelho humano.

“Infelizmente os ingressos se esgotaram para o show presencial, me desculpe. Mas, é possível ainda assisti-lo pelo seu sistema operacional. Os vouchers estão em promoção”.

A experiência do convívio social se transformou em um novo e rentável negócio; um revival de algo do passado. Funcionários humanos vendendo os ingressos; shows com bandas ou teatros com atores. Pessoas e mais pessoas juntas vivendo a moda dos nossos antepassados.

A sua vez na fila havia chegado quando os ingressos acabaram e um misto de raiva e frustação o dominou. A fila era grande, os ingressos limitados. Mas, no fundo, ninguém acreditava que não iria entrar. Só que o espaço físico é restrito. Ao mesmo tempo em que crescia sua raiva, uma nova sensação de bem-estar passou a dominá-lo. Era dopante e fez com que um sorriso de satisfação brotasse em sua face. Em segundos, nada parecia ter acontecido. Só uma sensação de felicidade plena.

A sensação causada pelo “be happy” era como um processo biológico acelerado, dissipando prontamente a mínima ameaça de tristeza. A raiva momentânea sumia. Esta sensação se tornou prontamente uma espécie de droga, com pessoas chegando a cultivar situações em que se sentem frustradas, raivosas ou tristes, só para poderem se sentir felizes novamente.

Os espaços de publicidade em cada visão computacional individual reforçavam a transformação pela felicidade, mas as ruas não se tornaram mais seguras por causa disso. O “be happy” excluía os erros humanos da memória, criando uma ética e uma moral elásticas. Mesmo um assassinato poderia ser apagado e suas consequências psíquicas eliminadas e substituídas pela felicidade proporcionada pelo “be happy”. Uma atualização de todo o sistema teve de ser feita para bloquear determinados impulsos homicidas. Mas o fato é que mesmo coisas simples podiam sumir de nossa memória afetiva, deixando em aberto uma questão: se o que é intangível ao indivíduo a ele pertence e some, o que restará ao eu?

Enquanto esperava um download no sistema, remexia em suas pastas de memórias de infância. Encontrou a lembrança de uma pequena bola de borracha vermelha e branca. A lembrança o fez andar até a sua escrivaninha e puxar a última gaveta. Ainda estava ali, com manchas de sangue. Ela pertencia a ele e outro moleque a quis pegar a força. Brigaram; e quando o derrubou, deu vários socos em seu rosto que sangrou; ele pegou a bolinha e saiu correndo. O ódio, a raiva e o medo vividos naquele dia voltaram vivas nele. Ao mesmo tempo, uma outra sensação foi emergindo. Uma sensação de prazer e felicidade. Um branco começou a dominar suas lembranças, com as imagens de toda aquela cena clareando até desaparecerem por completo. O que viverá parecia já não mais existir. Olhou a bola manchada, mas ela não parecia mais fazer sentido algum. A colocou na gaveta e seguiu para a cozinha. Hesitou sobre o que fazer. Haviam dois copos na pia, mas definir em qual beber água parecia naquele momento ter se tornado uma decisão difícil, e com consequências que não sabia precisar. Mesmo sendo tudo aquilo algo irracional e ilógico ao seu olhar.

Os dias seguiram a partir dali como habitual. O trabalho automatizado e as diversões virtuais de sempre. Numa destas folgas, escolheu um lanche em sua impressora 3D. Enquanto ela printava seu cheeseburger, começou a olhar o pequeno apartamento. Uma escrivaninha, paredes brancas para projeção e uma minicozinha. Acionou seu arquivo de fotos e as rodava com o movimento dos olhos. De repente, encontrou uma foto sua com a sua mãe, abraçados e felizes; ainda uma criança.

A foto lhe trouxe uma sensação de tristeza. Ela morrera depois de meses doente em uma cama sofrendo, com remédios apenas para amenizar sua dor e sedá-la. Alguns poucos dias antes de morrer, ela teve uma leve melhora. Ele estava ali no chão brincando, como às vezes fazia para ficar perto dela. “Não sofra pelo que não pode ser consertado; onde quer que você esteja, sempre ficarei com você. Estarei a seu lado”. Ele a abraçou na cama e chorou sobre suas mãos.

Mas, relembrando aquele momento, as lágrimas verteram de seus olhos e a dor da perda tomou conta de si, acompanhado de uma profunda tristeza. Foi quando percebeu a branquidão encobrindo sua visão e aquela cena se apagando. A sensação de prazer e felicidade começou a querer dominar o seu corpo. Mas, teve tempo de perceber que, como um rastilho de pólvora, o sistema procurava por outras imagens de sua mãe e as ia apagando; fazendo o mesmo com as poucas existentes de sua família. Desesperado, apertou sua cabeça com as mãos e a bater com ela na parede. “Não”, gritava, provocando um enorme esforço mental na tentativa de impedir que tudo se apagasse, e aquela sensação de felicidade o passasse a dominar. Uma grande luz branca então obscureceu sua visão; e ele caiu apagado no chão, enquanto vizinhos arrombavam a porta e o tentavam socorrer.

O Hospital dos Desplugados é um bonito local. O verde ocupa boa parte de sua área. São árvores e flores, com bancos espalhados e de onde se pode observar o jardim dos mais diversos pontos. Ele demonstrava gostar de um em especial, bem de frente a um canteiro de tulipas brancas. “Está na hora de entrar”, disse a enfermeira o pegando pelo braço. Já não falava e nem reagia a qualquer coisa; apenas se deixava conduzir. Era um vazio de olhar distante, quase sem vida, mas com um triste sorriso no rosto.

Humberto Luis Marques é jornalista formado pela Unimep. Há 20 anos atua com comunicação no agronegócio, ocupando atualmente o cargo de editor nas revistas Avicultura Industrial e Suinocultura Industrial. Com interesse em inovação tecnológica, tem trabalhado em pautas relacionadas a chamada Indústria 4.0 com aplicação no agro.

CADASTRE-SE AGORA PARA RECEBER EM PRIMEIRA MÃO A SERIE BLACK MIRROR

POR MÁRCIO SANTIM