IAPPF

COMO SEGUIR RETO EM LINHAS CÍCLICAS E TORTAS? PARTE 2

COMO SEGUIR RETO EM LINHAS CÍCLICAS E TORTAS? PARTE 2

Por Jairo Maurano Machado

Retomando a discussão colocada na primeira parte do artigo, toda a construção da perspectiva biopsicossocial deriva do movimento denominado de Disability Studies, constituído por teóricos inicialmente oriundos da Inglaterra. Os estudos deste grupo deram origem ao modelo social da deficiência, segundo o qual se evidencia a influência social sobre a definição de deficiência, pautada nas relações de exercício do poder de classes dominantes sobre as dominadas, especialmente como avanço do sistema capitalista, uma vez que a deficiência é preponderantemente entendida como uma tragédia, um desvio da norma.

Nesse sentido, todo aquele que não atenda a um determinado padrão imposto pelo capitalismo é considerado um ser desviante. Todavia esse raciocínio apresenta algumas falhas. A primeira delas é que a imposição desse padrão vem justamente pela minúscula parcela da sociedade que possui o poder, isto é, pela classe dominante. É ela quem dita o que é a norma e o que é o desvio.

Em segundo lugar, a deficiência, assim vislumbrada como fruto socialmente estabelecido, tem como consequência a rotulação de atributos aqueles que a possuem, isto é, além das características biológicas e/ou físicas oriundas de alguma lesão, a pessoa acaba por ser rotulada pela sociedade por alguma atribuição correlacionada com aquelas características, seja de ordem corpórea ou funcional. Sugerir-se-ia, inclusive, que esse estabelecimento de relações é que dá sustentação ao capacitismo.

Seguindo esse pensamento, infere-se que a deficiência é atualmente compreendida como um processo de opressão social, em que as pessoas com deficiências estão sujeitas a consequências que vão muito além da lesão que lhes acomete, haja vista que a própria sociedade, supostamente perfeita, a todo momento lhes impõe inúmeros obstáculos, tanto de ordem arquitetônica, quanto comunicacional ou mesmo atitudinal.

E novamente lançando mão da sétima arte, vale citar o filme Hasta La Vista, rodado na Bélgica, em2012. Ele retrata a aventura de três jovens deficientes que pretendem fazer uma viagem à Espanha para se divertirem. Contudo, o desafio dos garotos tem início já no âmbito de suas famílias. Em uma dada cena , percebe-se claramente a noção de opressão social, à medida que a decisão sobre como a viagem deve ocorrer parte dos pais e não dos próprios jovens.

Evidencia-se, pois, a necessidade dos garotos de superarem esse primeiro obstáculo, qual seja, conquistar a autonomia sobre como gostariam de conduzir a viagem. Mas ao longo do filme essa “conquista” vai sendo apresentada, seja pela própria vontade dos três protagonistas, seja por questões alheias, como por exemplo a troca de uma van perfeitamente adaptada às necessidades de cada um por uma outra cujas condições de funcionamento são bastante duvidosas.

Dessas passagens verifica-se um dos grandes desafios impostos às pessoas com deficiências em suas vidas, já mencionados anteriormente, a luta por direitos, a conquista por autonomia e liberdade, o direito de protagonismo sobre suas próprias vidas. Retoma-se então o quanto proposto na primeira parte do artigo.

De outra parte, é válido mencionar que, relativamente a essa luta por autonomia e independência, alguns pequenos avanços vêm sendo percebidos. Cite-se, por exemplo, o advento do instituto jurídico denominado de Tomada de Decisão Apoiada (TDA), previsto pela LBI.

Por essa nova figura jurídica, constante no Código civil brasileiro de 2002, ainda que a pessoa com deficiência necessite de auxílio na tomada de decisão durante a prática dos atos da vida civil, ela poderá indicar, por sua livre manifestação de vontade, quais as pessoas de quem deseja apoio. Com isso, aquilo que antes era entendido como regra no sistema jurídico brasileiro relativamente à capacidade civil das pessoas com deficiências tornou-se a exceção.

Se antes essas pessoas estavam sujeitas a sofrerem processos de interdição para serem curateladas, hoje a autonomia de vontade é presumida, de modo que o auxílio é que se configura como exceção e assim só será solicitado por vontade da própria pessoa.

Mas em uma situação ou em outra é visível que a deficiência infelizmente ainda é tida como tragédia, como defeito, como desvio, o que acarreta diversas consequências para as pessoas que compõem esse grupo, face a opressão social a que estão submetidas, seja para fazer uma simples viagem, seja para a prática de atos mais solenes.

Isso também acontece por conta do quanto já comentado anteriormente, relativamente a ausência de linearidade. Se assim o fosse, momentos de ruptura e de quebra de paradigmas seriam percebidos. Contudo, o que se verifica é a coexistência das concepções já citadas e, eventualmente,  a predominância de algumas delas, por mais perversas que sejam.

Ainda que  a visão pautada em um viés de caráter biopsicossocial seja muito mais adequada que aquelas noções teológicas e médico-patológicas, a possibilidade de coexistência de todas essas visões impõem alguns cuidados: necessário verificar se o novo discurso de fato corresponde à realidade; justamente em razão disso é necessário também sempre ter em mente a formulação de um auto-questionamento ético no sentido de saber se as atitudes dos indivíduos estão correspondendo as suas falas; e finalmente, mais que isso tudo, é preciso ouvir.

É importante também haver uma preocupação constante acerca dos processos que garantam às pessoas com deficiências o protagonismo sobre sua própria trajetória. Na verdade, muito mais que “garantir a essas pessoas”, é preciso que elas mesmas participem dessas discussões (nothing for us without us). Somente assim é que estarão legitimada se empoderadas para lutar pelo seu espaço no convívio social, para eliminar o constante processo de invisibilização que vêm sofrendo e, finalmente, para garantir o seu pleno e efetivo exercício da cidadania.

Sobre o autor

Jairo Maurano Machado é graduado em direito pela Universidade de Sorocaba – UNISO(2011). Possui especialização em Direito e Processo do Trabalho pelo Instituto verbo Jurídico (2020) e é servidor público do Judiciário Trabalhista da 15ªRegião desde 2011 (TRT15). Atualmente é mestrando do Programa de pós-graduação em educação Especial da universidade Federal de São Carlos (PPGEES UFSCAR).

Até que ponto na atualidade a sociedade conseguiu evoluir efetivamente quanto à eliminação ou pelo menos com relação à atenuação das diversas formas de discriminação e segregação que envolvem as pessoas com deficiência? Será que apesar dos avanços da ciência e das conquistas de determinados direitos por parte delas já podemos pensar em relações sociais mais igualitárias estabelecidas com os indivíduos considerados normais? Esses, entre outros, são alguns temas trabalhados nesse artigo escrito por Jairo Maurano Machado em que na primeira parte ele fará um paralelo com o clássico O Homem Elefante, filme britano-estadunidense dirigido por David Lynch, produzido em 1980 em que muitos dos conflitos apresentados parecem ainda não terem sido superados. Confiram!!!!

CADASTRE-SE AGORA PARA RECEBER EM PRIMEIRA MÃO: ARTIGOS, VÍDEOS E NOVIDADES

POR MÁRCIO SANTIM